quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

CAPÍTULO UM - trechos

A lâmina da faca emitiu um brilho cegante quando ele a retirou da gaveta. O homem não se vestia de maneira ortodoxa. Quem o via encaminhando-se para o escritório de arquitetura, nem imaginava tratar-se de um judeu, posto que se apresentasse ora em traje casual chique, ora bem à vontade em roupa esporte.
Acomodou cuidadosamente o punhal sob o paletó de bom corte, e foi esperá-la na calçada do prédio. Jéssica, a noiva, era uma bela morena, de olhos verdes que pareciam refletir a vegetação dos morros que circundavam a cidade.
Absalom aguardava a jovem fumando um cigarro, enquanto a outra mão apertava o cabo do punhal, protegido da visão dos passantes pelo paletó. O judeu ardia em fúria contida e anelava o mais rápido possível vingar-se do opróbrio. Desde que descobrira, por boatos, que a noiva não era mais virgem, tencionava livrar-se dela, obedecendo às recomendações da Torá, o livro da Lei, que os cristãos chamam de Pentateuco.
Abjurou a execução por meio de pedradas. Achava que a lapidação não seria prática. O aço gelado da faca lhe parecia mais garantido e confiável. Repetiu mentalmente diversas vezes como procederia ao vê-la à sua frente:
“Bom dia, querida” – falaria assim que ela descesse do apartamento. Olharia uns segundos para a cara da vagabunda e não daria tempo para que ela reagisse. Enfiaria a lâmina em suas entranhas, tiraria lentamente a faca, enquanto observaria o olhar de indagação da ex-amada.


Hana entrou chorando em casa. Segurava o hiyab, o véu que lhe protegia a cabeça, todo rasgado em uma das mãos. O pai afastou o jornal com caracteres árabes e, de um salto, seguiu-a até seu quarto. A mãe, que estava na lida doméstica, foi atrás com os olhos. Osama, o irmão mais velho, veio logo em seguida. A jovem de dezesseis anos pranteava desolada, ajoelhada ao lado da cama.
– Fui violentada dentro do banheiro da faculdade, papai – disse a menina, com as energias embotadas, a voz mal saindo de sua garganta. – Três rapazes... dois me seguraram... impediram-me de gritar... Fizeram isso porque não aceitei tirar o véu. Não quero mais estudar naquela faculdade, gritou em lágrimas. O pai se contorceu com a ira que chegava como lava de vulcão. O jovem sentenciou:
– Sim, irmã. Você não vai mais estudar naquele antro de infiéis. Nem eles.


Padre Jeremias havia tirado a casula, a estola e a túnica, com a ajuda de Francisco, o sacristão. Acabara de celebrar a última missa daquele domingo e, agora, só pensava em tomar seu banho, jantar, assistir um pouco de TV e dormir.
No entanto, Chico, como era chamado o sacristão, tencionava outro fim para o clérigo naquela noite. Já havia preparado a mesa onde Jeremias faria a ceia. Como de costume, o padre beberia antes uns goles de seu vinho favorito.
Chico leu mais uma vez Mateus: “Mas, se alguém fizer cair em pecado um destes pequenos que creem em mim, melhor fora que lhe atassem ao pescoço a mó de um moinho e o lançassem no fundo do mar”.


Nessa mesma noite, Marcos, um lutador de jiu-jitsu de cerca de vinte e cinco anos, se misturava ao grupo de jovens que saía de um culto evangélico. Recusou ir à praça central cantar músicas gospel com os companheiros. Inventou uma desculpa qualquer.
Caminhou pela rua mal iluminada e parou. Abriu a Bíblia e contemplou a peça preciosa guardada entre as páginas do livro. Um soco inglês, de metal fundido. “Aquela bicha filha da puta vai ter o que merece”, pensou, escancarando um sorriso homofóbico, cheio de ódio.

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